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Minha praga bíblica particular

Diego C. Sampaio
3 min readAug 10, 2022

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Ainda me pergunto para onde foram os besouros. A mata ao redor da cidade continua igual e não acho que um rio a menos faça tanta diferença assim. Será que só se cansaram de ser mal recebidos? Mudaram seus hábitos migratórios? Nunca existiram fora da minha cabeça? Quem sabe.

Eles sempre apareciam no meio do inverno, e aqui eu falo do inverno cearense, que é verão para o resto do mundo. Inverno, no Ceará, é quando chove, e fodam-se os trópicos, translação e rotação. Enfim, besouros. Já pro fim de dezembro começaram a aparecer numa quantidade quase bíblica, estavam em todo lugar. As donas de casa empurravam ondas e ondas de besouros pra fora das residências com um rodo.

O cheiro, do álcool usado para incendiar os bichinhos, tomava conta do ar. Sim, porque só empurrar para fora não adiantava nada, eles voltavam, correndo com suas patinhas velozes. Vovó juntava uma pilha na calçada e riscava um fósforo. Eu, covarde desde o berço, passava a dormir na sala, único lugar da casa com foro e, por isso mesmo, protegido da precipitação de besouros que assolava o resto dos cômodos.

Num movimento que, na época, classifiquei como um “felizmente”, ali por volta dos meus dezesseis anos, eles pararam de vir. Hoje percebo que essa classificação foi um erro, com certeza foi um “infelizmente”. Claro, fiquei aliviado por não correr mais o risco de acordar com insetos sob o lençol, no cabelo, no meu rosto, ou com aquela deliciosa sensação de carne queimando que eles provocavam ao contato. O cheiro também era horrível.

Sim, foi um “infelizmente” porque, apesar disso tudo, era um evento mágico. Imagine ver, de um dia para o outro, uma cidadezinha inteira coberta por milhões de besouros verde e preto? Tantos que a prefeitura, que naquela época não se importava com muita coisa, era obrigada a agir. Não sei nem se a casa do prefeito era forrada. Eram outros tempos.

O mais curioso, o evento era exclusivo, não se estendia a nenhuma das cidades próximas.Com certeza, se fosse hoje, estaria nas redes sociais. Seria uma curiosidade nacional, talvez passasse até na TV. “Pequena cidade do sertão cearense é invadida por besouros”. A manchete já vem pronta.

Não. Eles pararam de vir. Não acho que ninguém tenha registrado quando acontecia. Não há fotos, vídeos, nenhuma linha sobre o caso. Vovó agora é obrigada a indicar outras coisas como prenúncio do fim do mundo. Coisas bem menos impressionantes como o preço da cenoura no supermercado, um governo protofascista (ok, nesse ela tem alguma razão), e a pandemia (admito, ela está acertando mais que errando ultimamente).

É triste. Um município chamado Novo Oriente, batizado por um padre em homenagem às paisagens do oriente médio (nunca fui ao oriente médio, não tenho como julgar a precisão da escolha), onde surge, a cada passagem de ano, uma inexplicável praga de besouros, é uma premissa maravilhosa para uma história de apocalipse. Nem precisava distorcer muito as escrituras para encaixar como sinal.

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Diego C. Sampaio

Contista e cronista de qualidade discutível (aviso de pseudopoemas na pista), escrevo na intenção de ganhar biscoito de amigos, inimigos e desconhecidos